Pierre Verger: a escrita do Outro com imagens

Conferência - Pierre Verger: a escrita do Outro com imagens
14 de novembro de 2008 - 17h

Conferencista Jérôme Souty (EHESS França e UERJ Brasil)


Eu quero falar aqui da representação do outro nas imagens de Pierre Verger, do uso que ele fez das imagens na suas pesquisas (pesquisas etnográficas sobretudo, mas também históricas), no seus álbuns ou livros, e da articulação entre as fotos e a escrita para a produção de um saber.

Como vocês provavelmente já sabem, Pierre Verger foi um fotógrafo nos anos trinta e quarenta, e ele também virou progressivamente etnógrafo, etnólogo, historiador e mesmo botânico.... Nasceu em 1902 e foi criado numa família da alta burguesia parisiense. Logo rejeitou as influências exteriores, tão sociais como culturais ou estéticas. Teve uma juventude rebelde. Queria ressaltar o fato que ele foi um autodidata, tanto na fotografia como na antropologia. Não recebeu formação universitária.



No inicio dos anos 1930, Pierre Verger começou a prática fotográfica como fotógrafo independente, livre de qualquer compromisso, seja artístico, jornalístico ou cientifico. Ele era membro de uma agência fotográfica (Alliance Photo, a matriz da Magnum que contou também a colaboração de Frank Capa, David Seymour, Henri Cartier Bresson...), mas ele não trabalhava sob encomenda dessa agência, ou muito pouco. Além disso, estava sempre em grandes viagens ao redor do mundo, longe da sede da agência, em Paris.
Desde o inicio da sua prática fotográfica no início dos anos 1930, ele se interessa pouco pelos monumentos ou pelas paisagens. São as pessoas que captam toda a sua atenção. Ele fotografa sobretudo as manifestações culturais, as festas populares, a arte de viver no cotidiano. 
Depois de 10 anos de viagens no mundo inteiro como fotógrafo independente, ele vai passar alguns anos, de 1942 à 1946, nos planaltos dos Andes, entre o Peru e a Bolívia. Baseado em Cuzco, ele trabalha como fotógrafo para o museu Nacional Peruano (de Lima). Focaliza a sua atenção nas manifestações religiosas e festivas dos índios: em particular as danças, as festas, os trajes... É aqui que ele vai realmente começar a desenvolver um olhar mais etnográfico. [2 fotos Peru & Bolívia, 1942-46]

Mas é sobretudo a partir da sua descoberta das culturas afro-brasileiras do Nordeste (ele chega em Salvador/Bahia em 1946), que a fotografia se tornou um precioso instrumento de suas investigações documentais e etnográficas.
Depois dessa data de 1946, a quase totalidade das fotos tiradas são dedicadas ao mundo afro-americano e africano. Em 1948, depois de passar dois anos em Salvador, ele vai no Benim e Nigéria para fotografar, e também pesquisar a matriz dos cultos afro-brasileiros...
Finalmente, Verger dedicou cinqüenta anos de vida (de 1946 até a sua morte 1996) ao estudo das culturas da África do Oeste e suas diásporas religiosas no Brasil (em particular o candomblé em Salvador, mas também o xangô em Recife e a Casa das Minas em São Luis) e, em medida menor, nas Caraíbas (a santería em Cuba, o vodu no Haiti). 
No Brasil, ele foi iniciado ao candomblé de Salvador e assumiu certas responsabilidades honoríficas. Na África yoruba, depois de um longo processo de iniciação ao sistema de adivinhação do Ifá, virou Babalaô, mestre do segredo, guardião do saber oral yoruba. Na África foi iniciado também em algumas sociedades secretas masculinas? No Brasil na sociedade dos Eguns, os espíritos dos mortos.
Pelas imagens, pela escrita ou pela fala, Verger sempre destacou a força de resistência e de adaptação das culturas negras. Ele deu a ver o que as culturas africanas preservaram e reinventaram no Novo Mundo: as manifestações culturais e religiosas, a arte de viver. Ele sempre defendeu os valores sociais e psicológicos ligados às religiões politeístas: ausência de proselitismo e da dicotomia bem/mal; auto-estime dos adeptos; múltiplos processos de identificação, pluralidade das mediações, etc. 
[2 fotos de dois de seus ’’iniciadores’’ no Brasil (Mãe Senhora) e no Nigeria (Oluwo Ojo Awo)]



 
Uma representação fotográfica do Outro radicalmente nova
Quando Verger começou a fotografar, nos anos trinta e quarenta, a fotografia era ainda amplamente utilizada como uma ferramenta da antropologia física de caráter racista. As fotografias antropométricas eram muito utilizadas para descrever e a classificar as populações e as ‘’raças’’ do mundo, os tipos humanos. São imagens que afastam o sujeito da sua essência humana e que reduzem ele ao mero estatuto biológico, ou à suposta  condição de ‘’inferior’, de ‘’primitivo’’. Nessa época, a fotografia servia também para constituir uma série de imagens exóticas e pitorescas, de cartões postais, que promoviam a ideologia colonial. Estou falando de um contexto geral: claro que tinha exceções, existia fotógrafos mais “humanistas”.

É notável que, desde o início da sua prática fotográfica, Verger se colocou na contra-corrente destas representações fotográficas ‘’científicas’’ do outro. Suas imagens não revelam o olhar frio, classificador e naturalista da antropologia da época. Elas são também a contra-corrente das representações colonial do outro: rejeitam conotações pitorescas, exóticas ou condescendentes.  
Ao contrário, Verger mostra uma empatia profunda em relação ao sujeito fotografado. Pois, muitas vezes ele compartilhou de perto a existência e a amizade daqueles que fotografava. Para ele, eles foram muito mais do que meros objetos de estudo ou de fotografia. [foto de Verger numa aldeia na África]
Suas fotografias traduzem um olhar sensível e cheio de curiosidade.
Não há mise-en-scène de uma alteridade inacessível. Verger dá a ver uma alteridade enriquecedora e ‘’assimilável’’. Não existe uma representação da distância ao outro, mas, ao contrário, uma tentativa de se aproximar do outro, de torná-lo mais próximo. 
Na verdade o tipo de representação do outro nas imagens de Verger é muito ligado ao tipo da interação que ele desenvolveu, no campo, com as pessoas que ele fotografava. Além da participação de longa duração e a empatia que já falei, Verger usava um tipo de aparelho (o Rolleiflex) que deixa livre o olhar e favorece o diálogo visual, a interação dos olhares entre o fotógrafo e o fotografado [fotos Bolívia 1942, Vietnam 1939, Haiti, 1948]. Com a sua função de mensageiro entre Brasil e África, Verger fazia um uso relacional da fotografia, mostrando as imagens aos membros separados de uma mesma cultura, nos dois lados do Atlântico. A fotografia foi para ele muito mais que um mero instrumento de coleta, que uma caderneta de notas visual, que um diário visual, ou mesmo que um produto artístico. A fotografia entra em ressonância com a cultura oral, suscita muitas reações, facilita a troca de informações. Nesta foto construída em “abismo” [Benim, fim dos anos 40] pode-se ver as reações de curiosidade, de alegria, de felicidade.



Verger quebrou os códigos etnográficos de registro fotográficos: 
- O sujeito existe por ele mesmo: não é o representante anônimo e impessoal da sua ‘’raça’’ ou da sua cultura. As personagens aparecem com as suas singularidades individuais irredutíveis. [2 fotos, Benim, Haïti]. Por exemplo, às vezes as imagens priorizam a beleza plástica de um indivíduo. [2 fotos, Benim]
- As personagens estão muitas vezes descentradas da imagem ou até mesmo fora de campo visual principal.  Isto reforça a impressão de autonomia dos sujeitos.  [foto, dança para Heviosso (Fons), Benim, anos 40]
- O sujeito não posa, não está parado: as imagens são dinâmicas. A mobilidade do fotógrafo e a instantaneidade em relação ao evento fortalecem o realismo das imagens. 
- Os corpos estão em movimento, em ação, quase nunca estáticos: corpos em festa (dança dos sambistas, febre do carnaval), em êxtase (o transe de possessão), no trabalho (pescadores tirando as redes, carregadores do porto…). [foto, Salvador, 1952; Santería, Cuba, 1948]
- Os ângulos de tomada são novos (plongée, contre-plongée) e múltiplos [foto capoeira. Salvador, anos 40]
- A fotografia não busca necessariamente mostrar todos os elementos da cena, nem apresentar de maneira exaustiva as informações. Ela dá a ver um ambiente ou uma qualidade de clima social. Ela sugere a atitude, o jeito de ser do outro, às vezes a partir de um detalhe, de um movimento delicado, de um olhar carregado de emoção. [foto, Mali, 1935]
Podemos afirmar que Verger participou amplamente da renovação do olhar eurocêntrico sobre o homem negro, ele mudou a representação fotográfica do homem negro. Talvez pela primeira vez na história da fotografia, não é mais um olhar de homem branco sobre Negros, mas o olhar de um indivíduo sobre outros seres humanos. 



Arquivo, classificação e base de dados
Em La Chambre Claire, Roland Barthes já explicava que “a fotografia mostra imediatamente a soma de ‘detalhes’’ que é o próprio material do saber etnológico. Por exemplo, se eu amplio/aumento esta fotografia (ou se eu a observa de perto com muita atenção), vai aparecer um detalhe antes invisível: um brinquinho na orelha desse bebê; e com isso entendemos que é uma menina [foto Benin, anos 50]
As fotografias de Verger possuem freqüentemente uma potente carga documental. Mostram um número importante de informações (sobre rituais, festas, artesanato...). Elas permitem a observação dos detalhes e a percepção fina dos gestos. Vistas separadamente são de grande densidade etnográfica. Mas, além disso, uma vez integradas num corpus fotográfico, elas constituem um rico instrumento de análise etnológica. Assim, a partir de 1946-48, as fotografias do mundo africano e afro-americano, serão indexadas e organizadas com cuidado, formando um vasto corpus que permite a análise comparativa entre o mundo yoruba e fon (na África) e suas diásporas nas Américas. Nesse momento, a obra fotográfica de Verger se transforma num trabalho, numa empresa de arquivo visual, na constituição de um acervo quase exaustivo.
Este acervo fotográfico, que hoje está na fundação Verger (Salvador), constitui uma formidável base de dados comparativos sobre as culturas oeste africanas e a suas diásporas. 62 000 fotos, quase todas em preto e branco.
    O tipo de classificação que Verger fez dos seus arquivos fotográficos foi essencialmente geográfico, às vezes também temático, mas nunca foi cronológico (ele não datava as fotos). Na elaboração desta classificação, ele se inspirou, por parte, do seu método empírico de fotógrafo viajante. Não adotou necessariamente uma taxonomia científica rígida e exclusiva que seria dependente de critérios estritamente etnográficos. Classificou suas fotografias para utilizá-las e em função de uma temática aberta, que não exclui agrupamentos de acordo com afinidades estéticas ou subjetivas. O tipo de classificação da fototeca inspirou-se mais na classificação de uma agência fotográfica do que na tipologia de um museu etnológico. [Série 4 fotos homens adormecidos] em Salvador e em Recife, a série dos “dormeurs”, se fosse na fototeca do Musée de l’Homme em Paris, seria incluído no grupo types et vêtements. 
    Muitos etnólogos sociólogos, historiadores, utilizaram as fotografias de Verger: Alfred Métraux, (também fotografava, muitas vezes preferia as de Verger para ilustrar os seus artigos ou livros sobre Haiti), Roger Bastide, Gilbert Rouget, Manuela e Mariano Carneiro da Cunha, Lydia Cabrera, Gilberto Freyre, etc. 
    Essas imagens vão também enriquecer os acervos de museus. No Musée de l’Homme, em Paris, a partir dos anos 1930, as fotos de Verger (que foi fotografo benévolo do museu entre 1932 e 1937) vão também servir em exposições etnográficas).  

Passagem da imagem a escrita. Nova articulação entre a imagem e a escrita
Fotógrafo antes de ser etnólogo, Verger atribuía inicialmente uma autonomia completa à imagem. Ela é auto-suficiente, não precisa de comentários ou de interpretação. Funciona num registro diferente daquele da escrita. A foto era para ele um meio ideal, não verbal, para mostrar sem explicar.
No início dos anos 1950, após suas primeiras investigações na África sobre a origem dos cultos candomblé, Verger simplesmente não entende que o pesquisador Théodore Monod (na época diretor do IFAN em Dakar) não se satisfaz com o lote importante de fotografias que lhe entrega, resultado visual do seu trabalho de campo (e justificativa da sua bolsa de pesquisa). Nessa época, tudo o que ele tem a mostrar está inscrito nas suas fotografias. Ele confia, sem explicações, nas virtudes documentais da fotografia e não tem nada a acrescentar por escrito. 

Mas, depois, querendo mostrar a fidelidade africana dos cultos brasileiros, ele vai utilizar a imagem de maneira cada vez mais organizada e de maneira cada vez mais didática. 
  -mais organizada: por causa da sua preocupação de exaustividade e de cientificidade, ele deve antecipar as suas necessidades fotográficas e premeditar as tomadas de vista (por exemplo, obrigação de fotografar cada um dos principais orixás e os seus atributos, tanto na África como no Brasil). 
  -mais didática: ele vai operar uma montagem adequada das imagens, legendando as suas fotografias, escrevendo os textos que as acompanham. O ensaio fotográfico, logo aparece como a forma mais adequada para construir uma narrativa ao mesmo tempo visual e escrita, e para dar uma melhor coerência ao corpus visual. Verger vai criar uma articulação texto-imagem original e inédita. Nos seus álbuns, a articulação das fotos com os textos vai muito além da simples ilustração. Acoplados, montados, interpenetrados, imagens e palavras produzem um sentido, uma narrativa. Há uma coesão da montagem, ida-e-volta e congruência entre o verbal e o pictural, entre o que diz o texto e o que mostra as imagens.

A publicação do álbum Dieux d’Afrique em 1954 (pela primeira vez, Verger é o autor dos textos que acompanham as suas imagens) e sobretudo a longa redação das Notas sobre o Culto em 1957 (600 páginas de descrições etnográficas densas...) e o momento chave desta transição. Obrigado a escrever, Verger vai perder a liberdade do artista que tira fotos sem compromisso, sem idéia pré-estabelecida. Ele vai perder essa disponibilidade, o que ele chamava de “fotografia pelo inconsciente”, que fazia o charme, o estilo das suas imagens iniciais. Cada vez mais o serviço de... Vai diminuir muito a sua produção imagética nos anos 1960, e ele vai parar definitivamente a fotografia em 1982. 

A comparação pela imagem 
Verger desenvolveu um trabalho metódico de comparação visual sobre as culturas negras na África e no Brasil. 
Em alguns álbuns como Dieux d’Afrique (1954) ou Orixás (1981), ele mostra as semelhanças culturais e religiosas entre os dois lados do Atlântico, através de uma série de fotos colocadas lado à lado, em espelho.
São muitos dípticos, colocados em página dupla, compostos de uma fotografia africana e uma foto brasileira. Às vezes, o negativo de certas imagens foi invertido a fim de acentuar o efeito de espelho..... Essa distribuição cria um diálogo visual. A justaposição visual convida imediatamente à fazer uma comparação. 
[foto do Orixá Xangô, Ouidah/Salvador. Foto Transe, Benim/Salvador]
     As semelhanças e as permanências se destacam com clareza. Assim se apresenta a proximidade dos cultos yoruba e baianos: dos rituais e dos orixás, dos objetos e acessórios e mesmo das posturas, dos estados corporais e das expressões dos rostos.
     Essa justaposição é também um convite “a procurar o erro”, localizando as diferenças, as nuanças e as adaptações. Além de algumas mudanças do ritual ou das representações de cada orixá entre a África e o Brasil, também pode-se observar diferenças de ordem mais geral. Assim, as cerimônias africanas são principalmente públicas, no exterior, ao ar livre e na luz do dia; enquanto os rituais brasileiros parecem ter um caráter mais privado, freqüentemente acontecendo em espaços fechados. No Brasil, observa-se também uma simplificação das formas, da decoração e das ornamentações; tem algumas diferenças nas danças rituais; as cores de pele são um pouco mais claras, etc.  
[2 fotos adivinhação com noz de palmeira/África, com noz de Kola/Brasil]
[2 fotos de mulheres caindo no santo e ajudantes Arica/Brasil]
 
Nota-se que Verger estabelece também comparações visuais entre os Yoruba/Nago e os Fon/jeje, mas às vezes identificando os Yorubas africanos com seus descendentes Nagô do Brasil.  

Em seguida, esta técnica de demonstração pela imagem vai ser incluída em numerosos livros e álbuns:
    Em particular: Orixás, Deuses iorubás na África e no Novo Mundo (1981). E a versão revista e completada de Dieux d’Afrique, com muito mais detalhes. A parte feita no Brasil é ampliada. As informações são incluídas de maneira mais didática. As fotografias, mais numerosas, e freqüentemente acompanhadas da sua série, são também menos expressivas.
    Na obra coletiva Da Senzala ao Sobrado (1985), livro menos conhecido. a contribuição de Verger é dupla. As suas fotografias ilustram os textos do Manuela e Mariano Carneiro da Cunha sobre a arquitetura brasileira no Nigéria e no Benim. Ele também organiza um “ensaio fotográfico”: as numerosas fotografias apresentadas tratam da influência arquitetural brasileira (sobrados urbanos e casas rurais) nas cidades yoruba da Nigéria. Imagens são acompanhadas de curtas legendas explicativas que formam uma relação narrativa entre as imagens ou entre os blocos de imagens. O tipo de paginação e de distribuição das fotos constitui um início de interpretação que participa da intenção de demonstrar a importância e a unidade da arquitetura brasileira no Nigéria. [Foto de sobrado, Ibadan]
    Nota-se que este princípio de oposição visual a África/Brasil que favorece as identificações por justaposição e comparação visuais, será utilizada em numerosas exposições e álbuns organizados após a morte do fotógrafo. De fato, o princípio é aplicável a uma vasta gama de temas: objetos de artesanato, instrumentos de música, trabalhos e técnicas, gestos, expressões faciais e retratos, cenas da vida diária...  
[-2 fotos acarajé Ouidah/Salvador ]
[-2 fotos dockers Dakar/Salvador]
[4 Fotos atabaques: Culto aos orixás no Benim, Candomblé em Salvador, Casa das Minas em São Luis do Maranhão, vaudou em Haiti)]... e poderíamos assim continuar com outras fotos da Santería em Cuba, do Batuque em Porto Alegre.


Séries e seqüências de imagens 
A idéia de série narrativa é largamente procedente da foto-reportagem. Uma reportagem consiste em contar uma história com várias fotografias. Verger, que foi também fotoreporter desde o início da década 1930 até 1960, dominava a técnica narrativa pela imagem (O Cruzeiro). Mas, a partir do fim dos anos 1940, a fotografia de Verger torna-se sobretudo documental e o tipo narração que se aplica no campo da etnografia não é o mesmo. 

Nas fotografias feitas sobre os cultos africanos e afro-brasileiros, a série adquire uma dimensão demonstrativa, uma função científica. As fotografias em série, publicadas em livro-álbum, permitem sobretudo figurar as etapas do ritual, a sua progressão, o seu caráter dinâmico. Elas permitem decompor o ritual em unidades compreensíveis. Para o espectador, a fotografia única tem apenas um sentido estético ou informativo no primeiro grau etnográfico. Uma fotografia isolada de um ritual dá uma visão parcial, fragmentada. Ao contrario, multiplicar os pontos de vista de maneira diacrônica e situar os acontecimentos no espaço e o tempo permitem dar uma visão mais global do ritual. Apresentadas em série coerente, as fotografias podem adquirir um significado, uma inteligibilidade nova. 
A montagem adequada de séries de fotografias privilegia assim a elaboração de um sentido etnográfico e permite constituir uma forma de fotografia-linguagem, que as legendas ou os comentários apóiam. Trata-se de uma espécie de “romance-foto” que comunica uma idéia da estética do ritual, da mise-en-scène, da sucessão dos episódios, da relação dos protagonistas entre si, com o público, com os músicos, etc.

Freqüentemente, as legendas conectam uma imagem à outra, às vezes por meio de pontos de reticências. O comentário se apóia na imagem, e vice e versa. Por exemplo, a iniciação é descrita graças a uma série de imagens emblemáticas e as legendas permitem esclarecer a sentido e a ordem das seqüências visuais.

Dentro de uma série, o fotógrafo utiliza às vezes métodos específicos, como o plano campo/contra-campo, para acentuar a dinâmica visual e quebrar a impressão de linearidade. [3 fotos com o Orixá Xangô na África]

Verger usou também uma técnica de montagem paralela ou ’’cruzada’’ de duas séries de fotografias de um ritual similar na África e no Brasil. Duas (ou três) séries são misturadas em um único bloco narrativo que mostra o desenvolvimento de uma seqüência ritual. Isto é, na mesma seqüência, reuniam-se imagens fotografadas na África (às vezes em vários lugares) e no Brasil. Ainda para apoiar essa idéia de similitude/fidelidade entre África e Brasil. [3 fotos em série num santuário africano]
       
As séries de fotos de Verger mostram que os rituais afro-brasileiros são também performances artísticas e que o corpo humano está no centro desse dispositivo (danças, percussões, cantos, possessão ritual…).

Queria também enfatizar o fato que a sensibilidade do fotógrafo pode alcançar essa dimensão artística fundamental do ritual, uma dimensão que torna possível a eficácia simbólica dos rituais. Quero dizer aí que não tem oposição, entre sensibilidade artística e conhecimento cientifico, bem pelo contrario.
       
       
Fotografar o ritual. A busca da foto simbólica
A observação vivida ou o cinema permitem acompanhar o desenvolvimento de uma seqüência, e ver a dimensão diacrônica do movimento. Mas Verger, que participou várias vezes nas montagens de filmes documentários, considerava freqüentemente a imagem parada como mais interessante que a imagem animada. Esta, pela sua rapidez, nem sempre permite perceber o detalhe. Nas imagens animadas se sucedem as impressões visuais fugazes, uma anulando imediatamente a precedente. Pelo contrário, a imagem imóvel possui freqüentemente uma carga informativa mais densa, permitindo entender a essência do movimento, a dinâmica de um gesto ou de uma expressão, sua beleza, sua simbólica.
       
Contudo, não é necessário exagerar a capacidade das seqüências fotográficas de restituir o desenvolvimento de um ritual. Verger tomou fotografias em série dos rituais, mas não necessariamente de maneira sistemática ou numa vontade de exaustividade. Ele estava consciente da impossibilidade de restituir por intimação o desenvolvimento e a dinâmica de um ritual, como poderia eventualmente fazê-lo um filme. Além disso, existem limitações técnicas do aparelho Rolleiflex: rebobinar a cada tomada, filme de 12 poses, impossibilidade de tiro em série.
Por isso, Verger não se obrigava a constituir seqüência completas. Graças a essas justaposições de fotografias apresentadas em série, o desenvolvimento do ritual é restituído numa dimensão que não é contínua, mas descontínua. 

       

Antes de se esforçar para constituir uma panóplia completa, ele procurava a imagem simbólica, representativa.  Por exemplo, nestas 4 fotos em seguidas tiradas do livro Dieux d’Afrique: se trata aqui [4 fotos, Benim, 1949] de uma seqüência do rito público Oma, um rito de expiação, resultado da violação de uma proibição relativa às divindades ou aos seus representantes. Aqui, uma iniciante engravidou durante o período de reclusão no convento (onde nenhuma relação sexual é autorizada), o que suscita reações coletivas indignadas, zombadoras e paródicas. Estas 4 imagens fortes, de forte carga estética, acompanhadas de suas legendas precisas, são suficientes para explicitar o ritual. 

O Orixá é um elemento da natureza, corresponde também a um arquétipo de personalidade (seguindo a própria interpretação de Verger), mas também represente um ancestre familial (sobretudo na África). Nas legendas dos seus álbuns mostrando pessoas em transe de possessão, Verger nunca fala dum “individuo possuído pelo orixá tal..”, mas ele fala em geral de “a personificação do Orixá tal “... ou ele cita o próprio nome do Orixá. i.e: é o próprio orixá que é representado nas fotos. Por exemplo nesta foto [foto de Ogun, Benim, 1948], podemos facilmente identificar o Orixá Ogun graças às seus símbolos representativos: o sino agogô ou adja e a faca (se fosse Xangô seria um duplo machado,  Oxum um espelho dourado, etc.). Mas é  também a expressão facial, a postura corporal do iniciado em transe, e mesmo, segundo algumas interpretações o tipo físico do iniciado, que nos permitem identificar o deus. Como si o arquétipo de personalidade da divindade, o seu caráter (Ogun, guerreiro e orgulhoso;  Xangô justiceiro e  viril, Oxum sedutora....), fosse  visíveis.
Além disso, devemos lembrar que, nas suas interações comuns, os orixás re-jogam as cenas, evocando assim os  episódios míticos e a vida das divindades (a briga entre Xangô e Ogun, o ciúme entre as mulheres de Xangô, Oxum e Yansã, etc.). 
Assim, o “arrêt-sur-image” fotográfico e as séries destas fotografias nos permitem de passar, para dizer assim, do novicio ao deus, do rito ao mito, do gesto a sua significação simbólica.  

Para concluir, vou mostrar um outro exemplo de foto simbólica e impactante [Foto sacrifício, Salvador 1947]. Nesta imagem feita em Salvador de Bahia, no terreiro do Pai Cosme, podemos ver um filho de santo, cheio de sangue sacrifical, com plumas de galinha de angola na cabeça e no pescoço, segurando a cabeça de um carneiro pela boca (ele está mordendo a artéria do bicho). 
A coisa estranha é que o olho do bicho é muito brilhante, parece realmente vivo, enquanto o olhar do homem é apagado, ele parece desmaiado...  Podemos ver essa foto como uma imagem emblemática.  Pois ela ilustra perfeitamente o princípio do sacrifício de substituição: a força vital do animal é tirada para o beneficio da pessoa que oferece o sacrifício.  Essa força vital é uma oferenda ao deus (o orixá incorporado no individuo possuído), e ao mesmo tempo é um meio para o adepto possuído adquirir um suplemento dessa indispensável energia mágica-religiosa. Assim, esta imagem ilustra um princípio fundamental do candomblé: a necessária circulação/redistribuição da energia sagrada ou força mágica, chamada axê.