Cidade, fotografia e memória: considerações sobre os álbuns fotográficos de Porto Alegre

Simpósio A fotografia na construção da memória da cidade
13 de novembro de 2008 - 14h10

Coordenação: Cornelia Eckert (BIEV e NAVISUAL UFRGS)
Palestrantes: 
Denise Stumvoll (Museu de Comunicação Hipólito José da Costa) - Os frágeis suportes da memória. Preservação e acesso ao banco de imagens do acervo fotográfico/Musecom  
Zita Rosane Possamai (Faced - UFRGS) - Cidade, fotografia e memória: considerações sobre os álbuns fotográficos de Porto Alegre
Charles Monteiro (PUCRS) - Problematizando a construção de histórias e memórias da cidade através de forografias
Debatedor: Ana Luiza Carvalho da Rocha  (BIEV, PPGAS, UFRGS)

Cidade, fotografia e memória: considerações sobre os álbuns fotográficos de Porto Alegre
Zita Rosane Possamai (Faced - UFRGS)



Boa tarde a todos e a todas. Queria agradecer imensamente à Chica e à Ana Luiza pelo convite para fazer parte desse II Clique, parabenizar às duas pelo projeto porque acho que está realmente uma beleza.

Eu preparei uma apresentação em PowerPoint, na qual reúno algumas considerações, tentando pensar a relação entre fotografia e memória da cidade.  Abordarei alguns tópicos iniciais sobre a relação fotografia e memória e, posteriormente, me deterei especialmente no estudo de caso de um álbum fotográfico produzido em Porto Alegre, que foi objeto de pesquisa na minha tese e que apresenta essa relação entre a fotografia e a possibilidade de memória que esta traz.

Eu fiquei pensando quando a Chica propôs esta mesa, que há pelo menos duas situações envolvendo a fotografia e a memória. Uma delas seria a memória sendo uma preocupação na própria produção do registro visual, na produção da imagem fotográfica, ou seja, o quanto a fotografia é produzida com essa intenção de memória. E a outra situação é aquela em que a fotografia ou as imagens fotográficas são, a posteriori, instituídas como lugares de memória e são então guardadas, depositadas em acervos fotográficos, em arquivos, em museus. Essa problemática que Denise nos traz aqui hoje.

Então, eu acho que essa função memorial da fotografia está presente desde o seu surgimento. Desde os primeiros daguerreótipos a memória tem uma relação muito estreita com a fotografia, principalmente, na constituição dos retratos, na produção dos retratos. Quando vai se tirar um retrato, mesmo hoje, embora não se elabore objetivamente isso, sabe-se que aquele retrato terá um uso memorial, servirá para ser memória daquela pessoa fotografada. E por conta disso também, pensando no contexto da cidade, uma das primeiras utilizações que se faz da fotografia é justamente a função documental; ela é utilizada para documentar a realidade, documentar principalmente o presente das cidades, por ser um registro concebido como espelho do real. Desde que foi criada, a fotografia foi pensada como uma imagem que corresponde diretamente à realidade. Então essa função documental é uma das funções presentes desde o seu surgimento.

Ainda no contexto das cidades no século XIX, isso se vê na documentação dos monumentos que vão sofrer um processo de restauração. Há também uma preocupação dos fotógrafos em fazer o registro das transformações urbanas. A fotografia será um instrumento utilizado para mostrar as transformações pelas quais as cidades estão passando, num contexto de modernização, em que elas estão mudando drasticamente o seu desenho. São vários os exemplos que podem ser citados. Charles Marville em Paris faz uma cobertura fotográfica da Paris medieval, antes de Haussmann fazer a sua reforma urbana. Max Missmann, em Berlim, durante 40 anos busca estas imagens fotográficas da cidade. No Brasil, vários fotógrafos também tiveram esta preocupação, seja Marc Ferrez, no Rio de Janeiro, seja Militão Augusto de Azevedo, em São Paulo.

E a segunda situação é essa que a Denise mostrou um pouco a complexidade, quando a fotografia é instituída como um lugar de memória, indo para um determinado acervo. Lá é inserida numa problemática extremamente complexa, envolvendo uma série de questões relacionadas especificamente a curadoria e a gestão de acervos. A Denise citou alguns problemas, como a documentação, conservação, exposição, enfim, um rol de questões que merecem e que precisam ser contempladas quando a fotografia se insere numa instituição de preservação.

Penso que deva haver uma indissociabilidade entre, principalmente, a investigação - que se desenvolve no âmbito acadêmico - e a gestão dos acervos fotográficos. É necessária a cooperação entre as partes, no sentido de que a investigação possa também contribuir para a conservação, para a documentação, e também para a educação. De forma ampla, para a preservação deste patrimônio fotográfico. 

Eu passarei a me deter na análise do que eu venho pesquisando, os álbuns fotográficos, inspirada no trabalho de Solange Lima e Vânia Carneiro que se debruçaram sobre os álbuns de São Paulo. Aqui estão alguns dos álbuns que eu tenho pesquisado. Na minha tese trabalhei principalmente três:  "Obras Públicas”, editado em 1922; "Porto Alegre Álbum” de 1931 e "Recordações de Porto Alegre", editado em 1935. Posteriormente à tese, eu continuei a pesquisa, com apoio da Fapergs, pesquisando dois álbuns dos mais importantes fotógrafos de Porto Alegre do início do século XX, que foram os Irmãos Ferrari ( na verdade um conjunto de vistas que ao final montava um álbum). E "Porto Alegre" de Virgílio Calegari, editado na primeira década do século XX. E mais recentemente, em função de uma pesquisa filiada à história da educação eu me deparei com o álbum "Biografia de uma cidade", editado em  1940, pesquisa ainda em processo.



O álbum fotográfico é um material extremamente interessante para a pesquisa histórica ( eu falo aqui principalmente do ponto de vista da pesquisa na história), por trazer uma série de imagens fotográficas; sem muitas vezes o pesquisador precisar ordenar esta série. Não há muito esforço, por parte do historiador, de fazer uma busca por autoria, ou por uma temática, ou por um determinado acervo. O álbum, por si só, já se constitui como um objeto, um artefato que tem uma história também; tem vários aspectos que podem ser trabalhados, desde a sua produção até a sua circulação; como é que ele foi consumido, como é que ele circulou na sociedade. Eu pensei também o álbum como uma forma de coleção. O álbum é uma coleção no sentido de um conjunto de imagens que alguém fez essa seleção do que foi importante para ser colocado nesse álbum. Então esse processo de escolha está relativamente bem colocado no álbum por ter na sua produção uma autoria (por exemplo, o álbum fotográfico de um determinado fotógrafo) ou uma determinada temática (quando há um editor que propõe a edição, a produção desse álbum, reunindo essas imagens fotográficas, muitas vezes de diferentes autorias numa única peça). Eu trabalhei também com a noção de que estes álbuns constroem determinadas narrativas, como meu foco principal era a cidade, então eles constroem narrativas sobre a cidade, construindo também memórias desta cidade.

O álbum é menos uma coleção de pedaços dessa realidade, pensando a fotografia concebida como sendo um registro fidedigno da realidade; o álbum é muito mais um olhar, uma seleção que se faz e que está profundamente relacionada com o imaginário social. A idéia de que a coleção vai restituir uma continuidade perdida com o recorte fotográfico, pensando que o recorte rompe com essa continuidade, tentando mostrar uma totalidade maior da cidade. A coleção e o álbum permitiriam isso. Essa narrativa restituiria uma continuidade visual do espaço urbano. Essa narrativa estaria calcada sobre uma imagem única, quer dizer, é possível encontrar essa narrativa numa única imagem; na ordenação seqüencial das imagens dentro do álbum, e também na relação entre as imagens que se estabelece dentro do próprio álbum. A fotografia, nesse sentido, transforma processos em cenas; determinados processos são transformados num recorte, numa cena, que seriam estes registros documentais. A leitura visual que nós fazemos é a posteriori. O pesquisador, o leitor visual, vai tentar decodificar essas cenas, tentando construir uma narrativa que restituiria esse processo.

Nessa leitura visual, tento pensar a construção das narrativas, vinculando a visibilidade, quer dizer, aquilo que está visível nas imagens fotográficas, com uma determinada memória da cidade; e a invisibilidade, ou seja, aquilo que não está presente nas imagens, como uma construção também de esquecimento. 

Passo a falar especificamente do álbum "Recordações de Porto Alegre". Talvez vocês já tenham passado por ele nos acervos, ele é bem pequeno; eu não coloquei aqui as dimensões, mas ele é pequeno, tem lá no Hipólito e em outros acervos. Por que eu escolhi esse álbum para apresentar hoje? Bom, o próprio título já traz essa idéia da mesa que é a relação entre fotografia e memória, o próprio título que o editor deu para o álbum foi "Recordações de Porto Alegre". E ele foi produzido, acho que dá para ler ali, na frase bem em baixo, 1835 - 1935, então é um álbum comemorativo ao primeiro centenário da epopéia farroupilha. É um álbum que está dentro das produções das comemorações relacionadas ao centenário da Revolução Farroupilha. A Revolução Farroupilha, para quem não é do Rio Grande do Sul, foi um acontecimento importante no nosso imaginário, a tal ponto que nós comemoramos até hoje. É de tal importância no imaginário gaúcho que se comemora ainda hoje com uma data em específico, que é o dia 20 de setembro e que, além disso, ainda tem a semana farroupilha, mês farroupilha, enfim, é uma data realmente que tem muita importância. Não vou me deter nos detalhes, pois não vem ao caso.

Em 1935 houve essa comemoração grandiosa do centenário, sendo um dos eventos promovidos pela comissão que organizava a comemoração a exposição comemorativa do centenário, localizada no que hoje nós chamamos Parque da Redenção ou Parque Farroupilha. Naquele momento ainda não havia o que se conhece hoje como parque Farroupilha, era apenas um descampado. A área era conhecida como Várzea, uma área alagadiça, e essa área sofre o primeiro processo de urbanização para a instalação dessa exposição e essa primeira urbanização vai possibilitar depois que o parque seja efetivamente instalado naquele lugar. Essa foto é uma das primeiras do álbum, e aqui vocês já vêem a imagem da própria exposição montada, dá para ver inclusive o portão de abertura, o pórtico, perto dos prédios da UFRGS, e depois todos os pavilhões, alguns foram retirados, algumas coisas permaneceram. Por ocasião desta exposição, o álbum é produzido para ser comercializado na exposição. Aqui tem mais algumas imagens dos pavilhões, do pórtico de entrada, e alguns pavilhões que foram construídos. Nós temos as imagens dos visitantes. Para vocês terem uma idéia da repercussão que a exposição teve no período. Em 1935, vocês imaginem, a cidade tinha apenas 300 mil habitantes. A exposição recebeu um milhão de pessoas. Um milhão de pessoas não recebeu a primeira Bienal do Mercosul, aqui em Porto Alegre. Então dá para ver a dimensão, três vezes mais que a própria população da cidade no período, dá para ver a dimensão e o investimento que houve por parte do Estado, no sentido de fazer a comemoração do Centenário Farroupilha.

E neste álbum há um texto que informa o objetivo de sua produção, inclusive dando alguns nomes de fotógrafos das imagens que estão contidas no álbum. Apresenta um dos objetivos maiores, que é justamente dizer que "ao nosso público, e muito especialmente aos forasteiros que nos visitarem por ocasião dos festejos comemorativos da passagem do primeiro centenário da grandiosa epopéia farroupilha, temos o prazer de apresentar como lembrança da nossa capital essa coletânea de vistas". Então há uma intencionalidade objetiva, dita pelos próprios editores, no sentido de que esse álbum seja comercializado e, principalmente, levado como lembrança pelas pessoas que visitarem a exposição. Agora, eu passo a mostrar algumas das imagens que selecionei, para que vocês possam entrar comigo nessa coleção.

Uma característica importante do álbum é que ele intercala imagens isoladas, ou seja, imagens únicas, uma imagem em uma única página, como esta que vocês estão vendo, e imagens que estão diagramadas agrupadas numa mesma página. Sendo que a maior parte das imagens está dessa última forma, estão agrupadas. Há toda uma importância dada para as imagens isoladas, e grande parte delas são de edificações; a maior parte das imagens é de edificações da cidade. Essas imagens isoladas, necessariamente, acabam fazendo com que o olhar se detenha com mais vagar sobre a imagem. Enquanto o agrupamento de imagens acaba fazendo com que o olhar salte de uma imagem a outra, acontecendo um processo de construção de relações entre essas imagens. Por isso eu chamei este álbum de “olhar passageiro”, porque a maioria das páginas agrupadas forçava que este olhar fosse mais acelerado do que um álbum que contivesse única e exclusivamente imagens isoladas, como é, por exemplo, o álbum dos Irmãos Ferrari, é apenas uma única vista. Então aqui vocês vejam, no álbum são 18 imagens isoladas e 39 imagens agrupadas. Esse dado dá uma marca para a forma como o álbum é constituído.



A partir destas leituras dos álbuns que eu tenho feito, está sendo possível verificar que estes álbuns são veículos de imaginários sociais urbanos, ou seja, ao mesmo tempo em que eles são constituídos e construídos como frutos desse imaginário, eles auxiliam, contribuem na construção desses imaginários urbanos. Estas imagens fotográficas dos álbuns constroem uma determinada visibilidade desejada, uma visualidade desejada da cidade, jogando com essa trama entre visibilidade e invisibilidade. Estes álbuns tecem essas narrativas, ordenando as imagens, relacionando estas imagens e também fazendo a recorrência de determinados motivos fotografados que permitem a criação de sentidos no interior da obra. E esses álbuns e essas imagens constroem uma visibilidade da modernidade urbana. São álbuns que elegem elementos que contribuem para ver uma cidade de feições modernas. Fazem isso a partir da seleção do que escolhem para fotografar, principalmente os edifícios, aqueles edifícios que tem vários pavimentos mostram essa marca da modernidade chegando na cidade, ou os monumentos também. E também selecionando determinados artifícios formais de como construir aquela imagem, são dois elementos que contribuem nesse sentido. E também pela invisibilidade, ou seja, a exclusão de determinados elementos urbanos que nós sabemos que faziam parte da vida da cidade naquele contexto. Sabemos por outras fontes, que não as visuais; sabemos principalmente pelos jornais. Sabemos até mesmo por outras imagens que há outros elementos e que estes elementos não estão contemplados na coleção, na seleção que o editor fez. Neste sentido, o que é visível constrói uma visão da cidade moderna, essa é a intenção do álbum; e a invisibilidade constrói aqui o que eu chamo de esquecimento da cidade colonial, ou pelo menos desta cidade colonial que ainda existia; existia em elementos que ainda estão presentes nessa cidade, pois ela não se torna moderna de uma hora para outra; ela não se torna moderna completamente; ela tem elementos modernizantes, mas nem tudo que está na cidade poderia ser considerado moderno.

E pensar também a relevância da fotografia em Porto Alegre nesse jogo, nessa trama do mostrar, do dar a ver e também do fazer ver. Se na cidade é mais difícil ver essa modernidade acontecendo, na fotografia é muito mais fácil que ela seja realidade, principalmente pensando na força que tem a imagem fotográfica como espelho da realidade. A imagem fotográfica e o álbum mostram algo que talvez não seja tão simples ou fácil de ver na cidade, justamente por essa imagem técnica ter o poder de objetividade bastante grande. Certamente há limites nesse desejo, quer dizer, o historiador que trabalha com fotografia, com imagem fotográfica precisa sempre cotejar com outras fontes, é impossível trabalhar apenas com as imagens. Além de olhar as imagens, precisamos lançar mão de jornais, de relatórios, de outras fontes que nos ajude a ver essa cidade. Então seria isso.

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