Conferência de Abertura Henri Gervaiseau

Conferência de Abertura e exibição de documentários
25 de setembro 2008 - 18hs

Tem Que Ser Baiano? (Brasil, 1993, 42min.)
Em Trânsito (São Paulo, 2005, 98min.)
Direção: Henri Gervaiseau

Henri Gervaiseau
Escola de Comunicação e Arte - USP
Centro de Estudos da Metrópole - FAPESP


Não sei se é boa tarde ou se já é boa noite, mas enfim... Boa noite. Em primeiro lugar muito obrigado pelo convite, à Ufrgs, à Cornelia, à Anelise, que ainda não tive o prazer de conhecer, mas que intermediou grande parte da minha vinda aqui. Ao Rafael, a este grupo de pesquisa. Estou muito contente de estar aqui com vocês hoje.



Eu vou falar um pouco destas questões que foram levantadas aqui, mas muito em cima desta experiência de realização desse filme, particularmente, desse vídeo, "Tem que ser Baiano" e um pouco do "Em Trânsito" e talvez ainda de um outro trabalho que eu esqueci de sugerir que também passasse aqui porque tem a ver com imagens de acervo. É um pequeno clipe de três minutos e meio que eu fiz em 1988/1989 a partir de uma música do Gilberto Gil que se chama "Touchez pas mon potte". Touche pas mon potte seria, traduzindo para o português, não toque no meu chapa, não toque no meu amigo. Era o lema de uma associação anti-racismo que se chamava SOS-Racisme, cujo presidente na época tinha um nome bastante interessante, se eu for traduzir o nome do presidente desta associação, chamava-se “Desejo de Harlem”, Harlem Desir. 

Enfim, a França é um país que tem uma tradição de acolhimento de exilados, de gente de tudo quanto é canto. É uma terra de acolhimento e ao mesmo tempo é um país que tem uma tradição minoritária, mas bastante forte, que hoje em dia tem mais força do que no passado, que é uma tradição de direita, e é até uma tradição que poderíamos dizer de extrema direita. Até tem um restaurante aqui em Porto Alegre que para mim é um pouco chocante, eu gosto muito de ir lá quando estou aqui, chama-se Ocidente. Na minha memória de jovem parisiense, Ocidente era um movimento de extrema direita que havia em Paris nos anos 70. Eu tenho 54 anos, naquela época eu era um jovem esquerdista e fazia muitas manifestações de rua contra a Guerra do Vietnã. A França é um país, Paris principalmente, é um lugar que se vai muito, se ia muito à rua para se manifestar a favor ou contra certas coisas, e o Ocidente era um grupo de extrema direita que saía à rua armado, enfim... Então foi criado esse movimento nos anos 80 basicamente, e o Gil fez essa música, que era ao mesmo tempo a época do centenário da abolição. Então, sendo franco-brasileiro, eu me sensibilizei muito por essa dupla efeméride, como se diz e pensei que seria interessante usar esse gênero videográfico do clipe para tematizar essa questão, ao mesmo tempo do preconceito e da luta contra o preconceito. E eu fiz isso muito em cima de imagens de arquivo, particularmente de fotografias, na idéia de que isso é um dos aspectos do interesse de se usar imagens de arquivo. Você recupera imagens de momentos emblemáticos, que o seu expectador pode não ter conhecido, se o expectador é mais jovem, ao mesmo tempo, você pode trazer imagens também que os outros expectadores viram. E o fato de você trazer à lembrança aquela imagem que já tem um certo tempo, e você associá-la a outras, pode ter algum tipo de impacto na mente do expectador, já que, como vocês sabem, a nossa memória, ela é composta basicamente de imagens, o fenômeno mnônico, o fato de você se lembrar de alguma coisa que desperta o processo de lembrança, pode vir de várias formas, pode ser um cheiro, pode ser uma música, mas na nossa mente, as lembranças, elas são como se fossem fotogramas, mas que não tem uma base fotoquímica, e sim um substrato mental. Então, você usar imagens de arquivo também pode ajudar a ter certo tipo de impacto no espírito, na mente do expectador.

Eu me interesso por este tema da migração nordestina há bastante tempo, sou filho de um francês com uma cearense e sempre me interessei muito por este aspecto da migração que é um fenômeno social que tem importância talvez menos contundente no Brasil de hoje, mas que já teve uma importância muito grande no curso do século 20, de movimento de população e de mão-de-obra entre as regiões brasileiras, foi algo constitutivo de nosso país. Tanto no final da escravidão, do tráfico de escravos, tráfico intraprovincial de escravos, quando a escravidão, o tráfico de escravos foi proibido, como depois com o chamado mercado de trabalho nacional se constituiu, o mercado de trabalho livre, e depois enfim na história então da urbanização brasileira. Um fenômeno bastante significativo e hoje em dia, por exemplo, em São Paulo o fenômeno da migração não tem a mesma importância, não aportam tantas pessoas de fora, mineiros e nordestinos, como aportavam em outras épocas. Mas é um fenômeno que teve importância muito grande na história tanto do estado de São Paulo, quanto na história da metrópole paulista. E é uma história que é muito pouco conhecida na verdade, então eu me interessei muito por esta história e realizei no início da década de 80 uma série de entrevistas de história oral com imigrantes nordestinos. Eu estudei e percorri muitos arquivos e no início dos anos 90 quando reuni um pouco mais de elementos para poder produzir um documentário, que foi feito na época com muito pouco recurso, o fenômeno estava adquirindo um caráter um pouco diferente. 

São Paulo é uma cidade que tem uma história muito peculiar, ao mesmo tempo em que tem uma tradição de esquerda - qualquer que seja a apreciação que se faça hoje em dia sobre o PT, em São Paulo, ou no Rio Grande do Sul, de que o PT foi forte em São Paulo e ainda é, o movimento social é muito forte - ao mesmo tempo há cidades brasileiras que tem uma tradição conservadora e uma tradição de direita, embora a direita aqui no Brasil não se declare como tal, não tem uma plataforma clara como na França. São Paulo tem uma tradição conservadora antiga e ao mesmo tempo em que é uma grande metrópole, é uma metrópole que ao menos até recentemente era bastante provinciana. Os paulistas têm uma espécie de fundo, vamos dizer assim, oligárquico autocentrado, e isso mudou e tem mudado bastante, mas em São Paulo você se depara com uma tradição de autocentramento. Isso junto com uma certa raiva pela vitória da Erundina, no período ainda um pouco complicado da história recente do Brasil, quer dizer, o último presidente militar saiu em 85, depois disso tivemos o Sarney. A Erundina se elegeu em 1988, havia uma raiva muito grande por parte de certos setores conservadores paulistas pela eleição de uma nordestina de origem modesta como prefeita. Então é uma mistura de raiva de um certo eleitorado conservador com a manipulação dessa raiva por parte de políticos de direita, misturado com a crise econômica e social que o Brasil vivia no início do Governo Collor. Todo esse caldo de culturas, tinha uma conjuntura muito complicada nesse período.

E eu quando retomei esse trabalho, esse tema, não tinha a priore a intenção de dirigi-lo muito para a atualidade, acabei pesquisando muito em acervo. E eu julguei que seria fundamental tentar contar um pouco dessa história muito mal conhecida da migração nordestina em São Paulo, de que na verdade nordestinos vieram para São Paulo inicialmente porque foram subsidiados, se pagava o transporte para as pessoas virem. Eu achei que era fundamental contar essa história usando vários tipos de materiais de arquivo: textos, mas também imagens e sons. E foi enfim o que eu fiz nesse documentário "Tem que ser Baiano", que por um lado usa muitas fotografias, tem fotografias do Cruzeiro, vários tipos de fotos da época dos anos 50, 40 e tal. Usa filmes de época, tem imagens que aparecem de caminhão pau-de-arara, como se chamou, é uma programação de cine jornal que se chamava “Bandeirantes na Tela”, um cine jornal da época dos anos 50, início dos anos 50, também cita um filme muito usado que é esse do café que é de 22, você vê o pessoal trabalhando no café. E eu também fiz uma pesquisa ampla num arquivo de um colecionador de música e canções populares, não sei se ele está vivo ainda, chamado Nirei, então todas as músicas, a maior parte das músicas usadas, fora a do Luiz Gonzaga que aparece no final, vem desse arquivo, e a música tema do filme que é “Tem que ser Baiano" eu descobri numa loja perto ali da Praça da Sé, foram canções da época, também anos 50 basicamente. Então eu fiz um mix, fui uma espécie de DJ audiovisual, usando imagens e sons de diversas procedências e numa postura que não é tanto do historiador no sentido mais rigoroso da palavra porque, por exemplo, tem uma seqüência no filme onde ao mesmo tempo em que surge um texto de um deputado estadual paulista na assembléia constituinte de 34, onde se discutia o subsídio à imigração, e que diz “queremos que os nordestinos venham, a lavoura cafeeira esta precisando”, esse é um texto de 34. As imagens que nós vemos são de 28. Não é um trabalho de historiador, mas sim de alguém que busca mais trabalhar com a memória e através desse entrecruzamento de fontes orais, imagéticas e textuais, visa problematizar a abordagem do assunto e também suscitar interrogações na mente do expectador. 

É claro que neste sentido a imagem mais uma vez tem uma função muito específica que é variável segundo o expectador, já que se o espectador já conhece aquelas imagens isso pode ter um certo tipo de impacto, se ele não as conhece isso tem um outro impacto. Ao mesmo tempo tem um jogo que você pode fazer na sua composição, na composição audiovisual, no conjunto do documentário produzindo, que é você mexer com a própria memória do expectador, por exemplo, nesse documentário tem muitas imagens que aparecem repetidas vezes, mas elas aparecem repetidas vezes associadas de forma diferente, a outras imagens. Então a primeira vez que a imagem aparece ela aparece dentro do contexto de um conjunto de imagens, associada a um certo tipo de som ou de falas, e ela ressurge depois associada a outras imagens, outras falas. Esse é um recurso que também mexe com a memória, aí no caso do expectador durante o próprio filme, isso é um tipo de procedimento que eu usei e que eu acho que é muito interessante de a gente usar quando vai fazer um documentário. 

Eu fui muito influenciado por um grande cineasta armênio, que eu não sei se vocês já ouviram falar que se chama Pelechiam. Se vocês forem reparar, todos que se chamam iam são de origem armena, inclusive tem um homem que vende bonés numa das ruas ai de Porto Alegre que tem o nome iam e eu perguntei para ele e ele é de origem armena. Mas enfim o Pelechiam, grande cineasta armênio, muito pouco conhecido, ele veio ao Brasil numa mostra de cinema em São Paulo, nos anos 90 e não tinha um gato pingado na mostra dele porque essa coisa de divulgação e tal, mas é um dos grandes montadores de cinema, ele foi redescoberto na França e na Europa nos anos 80 e ele é um cineasta que tem uma teoria muito interessante resumida num artigo, é a teoria da montagem à distância. E os filmes dele me influenciaram bastante. 

Na verdade ele retoma muito da grande tradição de uma certa vertente do cinema soviético dos anos 20, do Eisenstein e particularmente do Vertov, que é a de que a arte da montagem busca articular não apenas fotogramas contíguos: como é que se relaciona um fotograma após o outro, como é que você liga uma imagem após a outra; mas que a arte da montagem, ou a arte dos intervalos para retomar a terminologia que o Vertov usava, ela também tem a ver em como criar uma distância entre fotogramas: como ao longo de um filme você pode articular fotogramas criando uma distância entre um momento e outro que passa o mesmo fotograma. Você muda o contexto em que o fotograma apareceu a primeira vez, em que ele é repetido na segunda vez e isso tem uma importância grande na mente do expectador e também no tipo de produção de sentido que a associação de imagens pode sugerir já que evidentemente como vocês sabem a produção de sentido ela se dá muito como na poesia no cinema pela associação das imagens. No caso deste trabalho eu tinha lido e tinha visto alguns filmes do Pelechiam e aquilo ali me impressionou bastante, me influenciou bastante então foi uma forma que eu tive de pensar a montagem desse filme.

Eu acho que o documentário se presta muito a isso, na medida em que ele tem uma liberdade de composição, não é um discurso científico racional, que deve produzir enunciados unívocos, que tenham apenas um sentido, o documentário em grande parte é um discurso, visa produzir um discurso de cunho poético, cujo entendimento, cuja leitura não é homogênea. A sucessão das imagens pode querer dizer várias coisas, o documentário se presta também ao uso de fontes escritas, imagéticas e sonoras. O documentário ele pode ser interessante também no sentido do quê resulta do confronto entre fontes diversas, o que resulta do confronto de uma imagem, de uma fotografia antiga, de uma canção antiga e o discurso atual? Como você pode suscitar novas reflexões, novos pensamentos, através desse confronto? Não usar apenas uma imagem ou um som antigos, uma fotografia, apenas como um elemento de prova, como se fosse um documento jurídico, numa argumentação de um advogado, uma prova pericial. A imagem fotográfica particularmente tem esse caráter indicial, é um vestígio, é um rastro de algo que efetivamente aconteceu, então tem essa dimensão de prova, vamos dizer assim, mas ao mesmo tempo você pode usar essas fontes e o confronto de fontes para produzir interrogações não é.

Outro aspecto que me parece também interessante no uso de filmes, fotos, imagens e sons de arquivo é que, justamente como parte das imagens ou dos sons que você usa pode ter tido uma recepção por parte do seu público antes, você está também de alguma forma lidando com o limiar da memória das pessoas, da memória individual das pessoas, da memória coletiva. Então se você viu determinado filme, ou viu determinada foto emblemática, em determinado período, isso também cria um certo tipo de impacto na memória do expectador.

Tem um outro aspecto também que a gente pode pensar do trabalho do documentarista neste sentido, relacionado a um trabalho de produção de uma memória, que é não apenas a incorporação de fontes pré-existentes, sejam fotos, sejam filmes, sejam sons, músicas, programas de televisão. O documentarista, usando material audiovisual ou escrito pré-existente ou não, ele de alguma forma está produzindo de uma forma consciente, um documento. Ele se preocupando no momento de editar, registrando as suas cenas, suas situações da vida cotidiana, de entrevistas, ele de alguma forma se preocupando em constituir uma memória na medida em que o registro audiovisual se constitui efetivamente, pode se constituir em algum tipo de documento. Por isso até que… se bem que esse termos de documentário né que hoje a gente usa comumente assim como tudo que é não ficção de alguma forma… tudo que é não ficção não, ai já fica um pouco mais complicado, porque sei lá, é… programa de televisão, a Xuxa, sei lá que não é uma ficção, não é um documentário. Mas o termo documentário é um termo relativamente recente, e até o termo de não ficção também. Para que algo se chame de não ficção tem que ter uma evidência, para que a gente consiga chamar algo de não ficção, isso pressupõe que existe algo que a gente chama de ficção. Então isso nasceu com o cinema. Já que documentário pode haver documentário biográfico, documentário televisivo é algo que vem já do cinema, e quando o cinema nasceu não existia por um lado o campo do documentário e por outro lado o campo da ficção. O campo da ficção e o campo da não-ficção, isso é algo que foi progressivamente se constituindo. 



Mas então é esta dimensão de documento, o documentarista deve se preocupar com a dimensão do registro que ele é capaz de produzir. E nesse caso, tanto quando eu fiz esse documentário “Tem que ser Baiano” que vocês viram, quanto muitos anos depois este outro que talvez parte de vocês vejam aqui, se tiverem paciência de ficarem tanto tempo aqui dentro, que vai passar daqui a pouco, me preocupei de forma diversa, com essa dimensão do registro. De que forma? Por um lado, por exemplo, no caso do “Tem que ser Baiano”, voltando àquelas questões da direita conquistando o pensamento conservador, etc. isso é algo próprio da sociedade brasileira, não é uma tradição, por parte do pensamento conservador, e dos políticos que tem uma atuação que pode ser qualificada mais conservadora, de ter um discurso ideológico muito explícito em defesa de suas posições conservadoras. Sabemos, geralmente são posicionamentos excludentes, que visam a defender os interesses de porções mais privilegiadas da sociedade. E nós sabemos que a sociedade brasileira é uma sociedade excludente. Não é por acaso que até hoje, por mais que haja um progresso neste sentido, a sociedade brasileira é uma das sociedades mais desiguais do planeta, onde a concentração de renda é maior e onde há uma distância mais quilométrica entre quem ganha pouco e quem ganha muito. Enfim, não vou rebater aqui coisas que são conhecidas de todo mundo, mas o fato é que não há, como na França, por exemplo, um pensamento tradicional de direita, que se afirme de direita. Aqui ninguém diz que é de direita. Eu achei que no contexto do tipo de discussão que me interessava favorecer com esse filme, desse documentário, eu deveria registrar o pensamento conservador. Tanto o pensamento conservador de figuras que poderiam ter um discurso ideológico mais explicito, como são estes vereadores e deputados estaduais que eu entrevistei e que aparecem neste documentário, como de pessoas comuns de São Paulo, percorrendo algumas ruas, de alguns bairros onde o eleitorado tradicionalmente vota na direita, como a Mooca.

Isso é um tipo de registro, um tipo de fonte que o documentarista pode produzir, para sua finalidade imediata, o documentário que ele vai produzir, como também aí sendo uma espécie de produtor de documentos para o historiador no futuro, por exemplo. Quando eu fiz o “Em Trânsito”, que é um outro tipo de trabalho, foi um documentário basicamente sobre o dia-a-dia de pessoas no trânsito e no transporte público em São Paulo e na grande São Paulo, sobre os trajetos das pessoas, nos trens, metrôs, ônibus, carros, motos. Por outro lado, o filme também conta com algumas conversas, alguns diálogos de profundidade, com algumas pessoas, que partilham sempre desse dia-a-dia e que, no decorrer da conversa, se a conversa era boa, abordava outras questões que estavam ligadas ao dia-a-dia, que permitiam ver como é esse dia-a-dia mais prosaico possível. Todo mundo tem que fazer isso, sair de casa para ir trabalhar, é algo bastante universal digamos assim essa necessidade, bastante banal, ocorre que isso se liga com outras dimensões da vida, sobretudo numa cidade em que as pessoas passam muito tempo fazendo isso, porque a cidade é muito grande e porque o transporte público é complicado. E tem coisas banais para a gente que vive no dia-a-dia, certamente vocês conhecem aqui Porto Alegre… é freqüente, num sinal, num engarrafamento, enfim, você estar dentro do seu carro e ter gente que é ambulante, que vende mercadorias na rua. Isso é banal na cidade. Quando eu estava fazendo esse documentário, no dia, por exemplo, que a gente estava gravando numa rodovia, eu fiquei pensando assim “bom, mas, isso é banal, é cotidiano”. Mas ao mesmo tempo isso é interessante, a gente gravar o que é banal, o que é cotidiano, esse tipo de relação humana que se estabelece neste tipo de situação, que a gente acha completamente banal. 

Neste sentido, o fato de ser franco-braslieiro, de ser de dois lugares, poderia ser franco-árabe ou brasileiro-sueco, o que importa mesmo no fato de ser de dois lugares é que ajuda você a ver de forma estranha o que é o familiar, não é isso? Porque é sempre interessante você fazer isso, você olhar para o que é banal, para o que é óbvio, com um olhar de estrangeiro. Eu pensei na França, por exemplo, em Paris, isso não acontece com tanta freqüência como acontece em São Paulo, no Rio ou em outras metrópoles brasileiras, você ter neguinho lá com um monte de bugigangas, bichinho de pelúcia e de negócio de celular, não sei o quê, que vende e aí a pessoa no carro passa todo o dia por lá, uma mulher burguesa, então a filha dela é amiga da menininha que está lá com o pai vendendo bugiganga. Normalmente esse contato não é tão comum. Então isso também eu acho que é algo, o documentarista no presente, tentando documentar algo do dia-a-dia e registrando algo daquele dia-a-dia, pensando que esse dia-a-dia do presente pode dizer alguma coisa sobre a sociedade em que ele se encontra, e ao mesmo tempo pode vir a ser um documento no futuro, de como as pessoas viviam naquela sociedade, naquele momento. Isso evidentemente não fui eu que inventei, esse tipo de postura é algo bastante presente na preocupação de quem registra… a partir do momento em que o registro… a possibilidade de você registrar fragmentos do dia-a-dia, fragmentos do cotidiano, a partir do momento que os artefatos técnicos permitiram, de uma forma que isso fosse possível, essa idéia já se encontrava. 

Por exemplo, não sei, o grupo aqui da UFRGS deve acompanhar isso, eu por acaso estou trabalhando em alguns vídeos, em função do meu trabalho lá na USP, e eu estava revendo esse livrinho aqui, um livro que estuda a fotografia e o documentário alemão e americano dos anos trinta e como naquele período muitos fotógrafos escreveram em revistas a idéia de um estilo documental e como essa discussão não apenas uma discussão acadêmica, mas isso também essa discussão em revistas etc. e tal resistiu porque essa é uma prática fotográfica no presente. Então havia um diálogo entre os fotógrafos escrevendo no espaço acadêmico, e os fotógrafos vamos dizer assim produziam textos, e Isso é algo presente, por exemplo, no projeto de uma fotógrafa americana desse período, dos anos trinta, que é a Abbott, ela tem um projeto muito importante, salvo engano eu me lembro que se chamava Changing New York, “Nova York mudando”. A idéia era fotografar de forma sistemática e contínua Nova York, porque a cidade estava evoluindo. Então essa idéia do registro, particularmente na fotografia americana dos anos trinta é algo presente em muitos projetos, e tem muitas iniciativas. 

Tem um cara que é contemporâneo da Nouvelle Vague, muito amigo do Godard, que se chama André Labarthe. Ele fez muitos programas de TV, uma série muito interessante que se chama “Cinema de notre temps”. Eu nunca vi os trabalhos dele, mas ele conta numa entrevista que ele mora em Paris, no mesmo lugar há 30 anos, e todo ano ele vai à mesma esquina com uma câmera 16 milímetros, e ele filma durante várias horas aquela esquina, mais ou menos na mesma posição. Eu não sei se ele já fez alguma coisa dessa gravação, acho até que tem um filme de ficção de um escritor americano que retoma um pouco uma idéia parecida, o “Cortina de Fumaça”. Não sei se esse realizador americano soube dessa história do André Labarthe, mas tem alguém que está fazendo isso efetivamente há 20 anos. Então essa idéia de você intencionalmente produzir no presente um registro, isso pode ser algo que é produzido profissionalmente, com vistas a uma utilização futura, mas que não é jogado na visão imediata dos contemporâneos. Você de alguma forma, como esse André Labarthe, está filmando, mas isso não está circulando. É a constituição de uma espécie de arquivo, vamos dizer assim, ou você pode também, como é o meu caso, você está realizando um documentário, tentando de alguma forma documentar a sociedade em que você vive e fazendo circular essas imagens, mas tentando também ter um olhar ligeiramente distanciado deste dia-a-dia.

Eu vou ler aqui as minhas anotações do que eu preparei aqui um pouco para comentar e algo que eu preparei tem a ver com a correspondência que eu troquei com a Anelise, quem é ela aqui hoje?

Eu estou aqui dialogando de alguma forma com algo que ela me colocou que seria interessante que eu comentasse algo sobre os itinerários urbanos presentes nos documentários que eu fiz, a questão da sociabilidade, que eu acho que são temas que vocês trabalham aqui, então que seria interessante falar alguma coisa…


Já vindo para essa questão que tem mais a ver diretamente com o “Em Trânsito”, filme que vai passar aqui. As pessoas, efetivamente hoje em dia… São Paulo talvez seja um fenômeno mais sofrível do que em outros lugares, nós passamos hoje muito tempo em transporte e nesse tempo que nós passamos em transporte, muitas coisas acontecem, quando estamos nos deslocando. Tanto quanto nós nos deslocamos a pé, por um certo tipo de sociabilidade que pode acontecer, como quando estamos nos meios de transporte coletivos, como ônibus, metrô, trem, como quando nós estamos dentro de um carro. São tipos de sociabilidades diferentes. Isso então era algo que me interessava muito quando eu pensei em produzir um documentário sobre essas questões. E ao mesmo tempo me interessei um pouco, e isso vai muito da influência do De Certeau, que é um grande etnógrafo, historiador, enfim, ele era um monte de coisa ao mesmo tempo, que é um homem que escreveu um grande livro que chama a Invenção do Cotidiano, ele se interessava muito pelo quê as pessoas fazem, como é que as pessoas numa situação em que elas não escolheram, vou aqui resumir de uma forma um tanto sumária parte das questões que De Certeau colocava, mas um dos aspectos que ele chamou a atenção é que hoje em dia, no mundo contemporâneo, as pessoas vivem em situações que elas a priori não inventaram, mas como dentro destas circunstâncias que elas não inventaram, elas conseguem inventar? Você passa três horas num ônibus para ir da zona sul de São Paulo, ou do centro de São Paulo para a zona sul. Você vai ficar lá sofrendo essas três horas, se lamentando porque “nossa, mas que desgraça, todo dia essa desgraça e tal” ou você vai procurar fazer algo nessas três horas, você vai procurar reinventar algo dessa adversidade. Não sei se vocês sabem, mas esse é um fenômeno muito interessante, acho que o hip hop aqui em Porto Alegre é algo, pelo menos até recentemente pelo pouco que eu sei, e eu sei muito pouco, me parece que não é um fenômeno desprezível aqui em Porto Alegre. Se não é em Porto Alegre, ainda menos em São Paulo. Muito do pessoal do hip hop se conheceu em ônibus, até um dos personagens que aparece no “Em trânsito” é um happer que conta que nos anos 90 todo dia, ele era Office boy e tinha que ir do centro de São Paulo onde ele trabalhava, para a zona sul onde ele morava e que tinha um samba de primeira, toda a sexta feira, particularmente. Enfim, isso é um certo tipo de sociabilidade…


Outra forma de sociabilidade é a reserva, que é algo que a Rita trabalhou bastante aqui na… no trabalho dela, enfim muita gente se interessa pelo que o Simmel tematizou, a solidão do cidadão metropolitano, dentro da multidão você evita o contato, porque é um excesso de contato, excesso de possibilidades de contato. Então as pessoas se fecham, isso é uma sociabilidade às avessas, mas não deixa de ser um fenômeno de sociabilidade, quer dizer, você evita o contato, mas você evita o contato porque ele é possível, porque há um excesso de contatos possíveis, você quer proteger a sua individualidade, e é claro que o fenômeno mais radical disso é o cidadão recluso no seu automóvel, com o seu vidro fumê, com medo de ser assaltado. Enfim, tudo isso são fenômenos contemporâneos de sociabilidade, você tem também outro tipo de fenômenos que são manifestações religiosas que podem acontecer particularmente nos trens, eu não sei se isso acontece nos trens de subúrbio aqui em Porto Alegre, mas no Rio e em São Paulo isso é um fenômeno muito presente, em certos tipos de linhas. Isso se dá também é claro pela necessidade que as pessoas têm de se agregar através de ritos religiosos e também pela dificuldade que elas têm de realizar isso no seu dia-a-dia fora de um espaço mais ritualizado que é um templo. Então já que o meio de transporte se transformou num lugar de passagem em que se passa muito tempo, um certo tipo de sociabilidade muito específica se reproduz nestes meios de transporte como uma questão muito fundamental do mundo contemporâneo. Isso me interessou bastante. 

Quanto aos trajetos, isso tem a ver também com essa questão, quer dizer, os trajetos que as pessoas realizam numa metrópole são diferenciais, tem muito a ver evidentemente com o tipo de grupo social ao qual você pertence, tem a ver com o lugar que você mora. Interessou-me bastante, ao mesmo tempo vendo aqui os pontos sugeridos também para eu poder dizer alguma coisa para vocês, de dialogar com vocês a partir do que a anelise sugeriu, esta questão dos cenários urbanos, como é que a gente vê a cidade quando estamos num meio de transporte? Isso é um certo tipo de visão que se tem da cidade, você vê em geral a cidade emoldurada através de um quadro que é a janela. Em geral as janelas, pelo menos dos trens de subúrbio no Rio de Janeiro e São Paulo, elas são mais opacas, são mais fechadas, então você não vê muito a paisagem urbana. Em compensação em São Paulo você tem o metrô subterrâneo, mas você tem também o metrô que passa, não sei se chama assim, na França se chamava metrô aéreo, metrô que passa como se fosse uma espécie de trem, não passa num túnel, ele passa no meio da cidade. A janela do vagão é ampla, então você vê a cidade através dessa janela e tem um certo tipo de percepção da cidade. Da mesma forma, quando você está no ônibus você tem um certo tipo de visão através da janela. E muita gente que vive uma vida puxada, muito do desfrute visual que essa pessoa pode ter da cidade em que vive, é um recorte fragmentário que se dá através do enquadramento oferecido pela janela. 

Enfim, são muitos trajetos e muitas visões que você pode ter, a visão que você pode ter, por exemplo, o tipo de apreciação visual que você pode ter da paisagem urbana, é diferente se você circula de moto. Uma coisa é você ter essa experiência sensorial “na vida real”, na vida que você realiza, na experiência sensorial que você vive no seu corpo, com o seu corpo, quando você está como terráqueo, dentro de um meio de transporte qualquer e quando você está andando. Outra cosia é a experiência que você tem desse tipo de circulação visual do cenário urbano quando você está sentado numa sala de cinema ou em frente ao seu vídeo, quando essa paisagem urbana lhe é oferecida para ser vista por um filme, porque ai evidentemente que o cineasta ou o videasta, qualquer que seja o termo que se use, ele pode lhe dar uma apreciação, construir um movimento cinético de um certo tipo, ele pode recortar essa paisagem e remontá-la na cena que ele quiser de um jeito X, para produzir um certo tipo de efeito, na mente do expectador.

Enfim, não sei se está muito fragmentado, muito misturado, o que eu estou colocando aqui para vocês, talvez seja interessante, não sei se há tempo, se houve alguma obscuridade, que eu comentei aqui de forma um tanto improvisada, se alguém teria alguma pergunta ou… teria prazer em responder…

Então muito obrigado pela presença de vocês.



Um comentário:

ATHAYDE disse...

Tenho muito interese em obter uma cópia do docume ntário.
Como posso fazer?
Antonio Carlos Athayde
acathayde@academia.org.br
Tels.:]21- 3974 2552
8622 2361